sábado, 23 de fevereiro de 2013

Sinais de Aflição


Por que Jesus precisou sofrer e morrer? A pergunta merece um livro inteiro e já inspirou muitas obras, mas a resposta mais misteriosa provém da Bíblia: o sofrimento serviu como “experiência de aprendizado” para Deus. Essas palavras parecem ligeiramente heréticas, mas estou simplesmente seguindo Hebreus: “Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu” (Hb 5:8). Em outra parte, esse livro nos ensina que o autor de nossa salvação foi aperfeiçoado pelo sofrimento (Hb 2:10).
Essas palavras, recheadas de insondável mistério, certamente significam no mínimo o seguinte: a encarnação teve um significado para Deus, bem como para nós. Em certo nível, é obvio, Deus entendia a dor física, tendo ele planejado o maravilhoso sistema nervoso que a conduz para o cérebro como um alerta contra o mal. Mas o Espírito algum dia sentira dor? Não até a encarnação. Em seus 33 anos na terra, ele aprendeu sobre a pobreza, sobre brigas em família, sobre rejeição social, sobre ofensas verbais e sobre traições. E ele também aprendeu sobre a dor.
O que é sentir no próprio rosto a marca deixada pela mão do acusador? O que é sentir nas próprias costas os golpes de um chicote de metal? E o que é sentir cruéis pregos enfiados a marteladas nos músculos, nos tendões e na pele? Aqui na terra, Deus aprendeu tudo isso.
De alguma forma incompreensível, por causa de Jesus, Deus ouve nossos gemidos de modo diferente. O autor de Hebreus admira-se com o fato de que tudo aquilo que nós provamos Deus também já provou. “Pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém sem pecado” (Hb 4:15). Temos um sumo sacerdote que, sendo formado na escola do sofrimento, “é capaz de se compadecer dos que não tem conhecimento e se desviam, visto que ele próprio está sujeito à fraqueza” (Hb 5:2). Graças a Jesus, Deus entende, realmente entende, nossos gemidos.
Já não precisamos gritar para o abismo: “Ei, você está me ouvindo?”. Unindo-se a nós aqui na terra, Jesus deu uma prova visível, histórica, de que Deus ouve nossos gemidos e até mesmo geme conosco.

Distress Signals [Sinais de aflição], Christianity Today,
8 de outubro de 1990, p. 34-35.
Philip Yancey - Sinais da Graça

O Deus Sofredor


O Antigo Testamento nos proporciona muita percepção de “como é” ser Deus. Mas o Novo Testamento registra o que aconteceu quando Deus aprendeu “como é” ser uma criatura humana. Tudo o que possamos sentir Deus sentiu. Queremos por instinto um Deus que não apenas tenha conhecimento da dor, mas que também compartilhe dela; queremos um Deus que seja afetado pela nossa própria dor.
Como rabiscou o jovem teólogo Dietrich Bonhoeffer numa anotação no Campo de uma prisão nazista: “Somente o Deus Sofredor pode ajudar”.
Graças a Jesus, nós temos esse Deus. Hebreus relata que Deus pode compadecer-se de nossas fraquezas. O próprio termo grego para compadecer-se, simpatizar, significa “padecer com", sym pathos.
Seria um exagero dizer que, por causa de Cristo, Deus entende nossos sentimentos de decepção com Deus? De que outro modo podemos interpretar as lágrimas de Cristo, ou seu grito do alto da cruz? Alguém poderia quase despejar nossas perguntas acerca do que poderia parecer uma injustiça, um silencio, um mistério de Deus, naquele terrível grito: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonas-te?”. O Filho de Deus “aprendeu a obediência” de seu sofrimento, ensina Hebreus. Uma pessoa só pode aprender a obediência quando é tentada a desobedecer, só pode aprender a coragem quando é tentada a fugir.
Por que ]esus não brandiu uma espada no Getsêmani? Por que não chamou suas legiões de anjos? Por que declinou o desafio de Satanás de deslumbrar o mundo? Pela razão seguinte: se ele houvesse agido assim, teria falhado em sua missão mais importante – tornar-se um de nós, viver e morrer como um de nós. Foi a única maneira que restou a Deus para agir “Segundo as regras” que ele estabelecera na criação.
Em toda a Bíblia, especialmente nos Profetas, vemos o conflito ardendo no seio de Deus. De um lado, Deus amou com paixão as pessoas que criou; de outro lado, Deus tinha um terrível anseio por destruir o mal que as escravizava. Na cruz, Deus resolveu esse conflito interior, pois lá o Filho de Deus absorveu a força destrutiva e a transformou em amor.
Decepcionado com Deus
Philip Yancey - Sinais da Graça

A Alquimia da Dor


O cristianismo contém paradoxos que teriam pouco sentido se não considerássemos a vida e a morte de Jesus. Vejamos este exemplo: embora a pobreza e o sofrimento sejam “coisas ruins" que eu passo a vida inteira combatendo, elas estão ao mesmo tempo entre as “bem-aventurnças". Esse padrão do ruim transformado em bom tem sua expressão máxima em Jesus. Assumindo-a pessoalmente, Jesus dignificou a dor mostrando-nos como ela pode ser transformada, Ele nos deu um padrão que deseja ver reproduzido em nós.
Jesus Cristo é o exemplo perfeito de todas as lições bíblicas sobre o sofrimento. Devido a Jesus, eu nunca posso dizer sobre uma pessoa: “Ela deve estar sofrendo por ter cometido algum pecado"; Jesus, que não pecou, também sentiu a dor. Deus nunca prometeu que os tornados vão poupar nossas casas em sua passagem em direção a nossos vizinhos pagãos e que os micróbios vão evitar o corpo de cristãos. Não estamos isentos das tragédias deste mundo, exatamente como Jesus não estava. É preciso lembrar que Pedro recebeu a mais forte repreensão quando protestou contra a necessidade de Cristo sofrer (Mt 16:23-25).
Nós sentimos a dor como uma ofensa; Jesus também, e foi por isso que ele operou milagres de cura. No Getsemani ele não orou dizendo: “Obrigado por esta oportunidade de sofrer"; antes, suplicou desesperado pedindo uma saída. Todavia, ele estava disposto a submeter-se ao sofrimento em prol de um objetivo superior: No fim, ele entregou as questões mais difíceis (“Meu Pai, se não for possível ...") à decisão paterna, confiando que Deus poderia usar para o bem até mesmo o ultraje de sua morte.
Na alquimia suprema de toda a História, Deus tomou a pior coisa que poderia acontecer - a espantosa execução do Filho inocente - e a transformou numa vitória definitiva sobre o mal e a morte. Foi um ato de habilidade sem precedentes, que transformou o projeto do mal pondo-o a serviço do bem, um ato que encerra uma promessa para todos nós. O inimaginável sofrimento da cruz foi plenamente redimido:  é por suas feridas que somos curados (Is 53:5), por sua fraqueza que somos fortalecidos.

Onde está Deus quando chega a dor? 
Philip Yancey - Sinais da Graça

O Poder que Desarma


A igreja levou muito tempo para aceitar a ignonímia (infâmia pública) da cruz. Apenas no século 4 a cruz realmente tornou-se símbolo da fé. (Os estudiosos observam que a crucificação só se tornou comum na arte depois da morte de todos os que haviam testemunhado uma crucificação real.)
Hoje, porém, o símbolo está em toda parte: os artistas moldam em ouro e outros metais este instrumento romano de execução, atletas fazem o sinal da cruz antes de uma performance. Por mais estranho que isso pareça, o cristianismo se tornou a religião da cruz – a forca, a cadeira elétrica, a câmara de gás, em termos modernos.
Normalmente, pensamos que alguém que morre como criminoso é um fracasso. Todavia, Paulo refletiria mais tarde acerca de Jesus, dizendo: “Tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz”. O que quis ele dizer com isso?
Em certo nível, penso em indivíduos de nosso tempo que desarmam os poderosos. Os xerifes racistas que trancafiaram Martin Luther King em celas de cadeia, os filipinos que assassinaram Benigno Aquino, as autoridades sul-africanas que prenderam Nelson Mandela – todos esses estavam resolvendo um problema e, no entanto, todos acabaram escancarando sua própria violência e injustiça. O poder moral pode exercer um efeito apaziguador.
Quando Jesus morreu, até um ríspido soldado romano foi levado a exclamar: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus!”. Ele viu o contraste com extrema clareza entre seus colegas embrutecidos e sua vítima, que, agonizando, os perdoou. A pálida figura pregada no travessão de uma cruz revelou que os poderes dominantes do mundo eram falsos deuses que descumpriam suas próprias promessas de piedade e justiça. A religião, não a irreligião, acusou Jesus; a lei, não a ausência da lei, o executou. Com seus julgamentos manipulados, seus açoites, sua violenta oposição a Jesus, as autoridades políticas e religiosas daquela época mostraram o que eram: promotoras do status quo, defensoras apenas de seu próprio poder. Cada ataque contra Jesus pôs a nu a ilegitimidade delas.
adaptado
O Jesus que eu nunca conheci
Philip Yancey – Sinais da Graça