terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Nossos impedimentos e a liberdade de Deus

Por modos inumeráveis, Deus se revela a todos. Ninguém fica prejudicado pela revelação de Deus. No entanto, algumas pessoas o recebem e outras não. Por quê?
Talvez porque algumas pessoas se desimpedem para Deus. Alguns ousam viver diante de um Deus livre.
É preciosa a definição de Rubem Alves para a liberdade de Deus:

Dizer que Deus é livre significa que ele se ri das nossas tentativas de conhece-lo pela teologia, aprisiona-lo em instituições, administra-lo pela burocracia. Ele sempre anda por lugares não previstos, na companhia de gente estranha, fazendo coisas meio esquisitas, tal e qual Jesus Cristo. (Rubem Alves. Dogmatismo e tolerância, Loyola). 


Há um texto de transição no livro de Atos. O cristianismo caminha com força em Jerusalém. O centurião Cornélio vive em Cesareia. Pedro é levado pela liberdade de Deus para lá. São duas visões. A visão de Cornélio, em que um anjo o avisa de suas orações e esmolas como pontos de contato com Deus; e a visão de Pedro, com fome e em êxtase, convidado por Deus a ultrapassar os limites da religião: os bichos impuros para prática religiosa conhecida de Pedro são puros aos olhos de Deus.
Pedro aceita o convite. Vai à casa de Cornélio e lá descobre que a visão dos bichos purificados fazia todo o sentido. Deus já estava em Cesareia antes de ele chegar. Pedro não foi evangelizar apenas. Foi evangelizado pelos de fora. Deus na casa de Cornélio é uma boa e inesperada notícia.

A grande notícia deste trecho em Atos não é a aproximação ao cristianismo de alguém com notoriedade, como Cornélio, chefe de uma tropa com cem soldados romanos, que provavelmente também governava a província onde vivia. Também não é a descoberta de que o cristianismo não é a religião de incultos apenas – tendo em vista a provável formação intelectual privilegiada do centurião.
A grande notícia desta história é que Deus não privilegia ninguém. Não há uma panelinha do céu. Deus busca a todos. Ele está definitivamente aberto a todos. Um Deus que escolhe a quem se revelar é um Deus só dos escolhidos, sem chance sequer de ser um outro Deus. O Deus dos escolhidos é um Deus prisioneiro. Porém o Deus que Lucas quer que conheçamos é o Deus de todos os homens e mulheres.


Na história de Cornélio somos apresentados à liberdade de Deus, experimentada por Pedro e seus companheiros de viagem. Então Pedro começou a falar: “Agora percebo verdadeiramente que Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo.” (Atos 10:34).

O texto sugere que havia em Cornélio uma postura que o tornou desimpedido para Deus. Revela também uma postura em Pedro que o tornara impedido para Deus até então. Ambos experimentaram a liberdade divina. Pedro é liberto pela liberdade de Deus enquanto assiste ao espetáculo de um não religioso experimentando-o com intensidade inquestionável.
A maneira como o centurião vivia o tornou mais sensível à liberdade de Deus. Claro, este não é o único modo de Deus revelar-se. Essa história não é um padrão, na verdade, é um episódio não-padrão, um contraponto. É Deus correndo por fora! Deus além do quintal da igreja incipiente. Daí a resistência de Pedro, mesmo em êxtase. Daí seu susto, mesmo depois do êxtase.

Não podemos tratar Cornélio como fazem alguns, como alguém que até se encontrar com Pedro era “ímpio” ou que tenha se “convertido” depois de ouvir o sermão do evangelho de Pedro. O testemunho do texto é que Deus é com os não-judeus como foi com os judeus. Cornélio é um convite divino para conhecermos Deus pela sua liberdade e não pelas nossas suposições.

A história inicia-se relatando o que a torna surpreendente. Cornélio já amava a Deus antes de se envolver com os aspectos religiosos de amar a Deus. “Ele e toda a sua família eram piedosos e tementes a Deus; dava muitas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus” (Atos 10.2). Ele tinha uma vida com Deus maior do que a vida com a religião. Uma genuína relação com Deus. Os não-judeus que buscavam ao Deus dos judeus sem se converterem ao judaísmo eram chamados de tementes a Deus.

A narrativa de Lucas nos dá a conhecer é a prioridade que a vivência com Deus tem sobre a vivência com a religião. É assombroso o fato de invertermos essa prioridade frequentemente. Isso acontece quando a nossa vida religiosa, as programações da religião e suas obrigações se tornam a única coisa em nós que tem a ver com Deus. Então, fora do momento religioso, ficamos com poucos vestígios de Deus.
O que resta de Deus na minha vida quando não estou nos ambientes da religião? O que sobra quando tiramos a roupa de crente?

O anjo que aparece a Cornélio em visão afirma que suas orações e esmolas tinham memória no céu. Deus era tocado pelo modo como ele tocava as pessoas à sua volta. Enquanto Pedro afirmava “jamais comerei algo impuro”. E quando o impuro toca em Deus mais que os puros?
A maneira como tocamos as pessoas ao nosso redor marca o quanto nos aproximamos de Deus. As orações chegam aos ouvidos de Deus, mas à sua memória chegam as esmolas, o modo como tocamos os “pequeninos” de Jesus. Quando foi que Jesus, entre os homens foi tocado desta forma? A resposta desmistifica nosso culto: “O que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25:40).

Cornélio era alguém que não subestimava os sinais de Deus. Mesmo diante da religiosidade excludente, sectária, de Pedro, ele ainda se mostra disposto a ouvir o que Deus pode falar.
Pedro mostra-se como um instrumento inadequado, poderíamos dizer. Primeiro insiste em riscar da sua lista missionária quem não é judeu. Depois, mesmo com a agressiva revelação de Deus, discute com o Céu para não abrir mão do que pensa. E, ao chegar à casa de Cornélio, suas primeiras palavras afirmam que não gostaria de estar ali (Atos 10:28).
Mesmo assim, Cornélio está aberto para Deus o suficiente para enxergar um sinal divino na vida de Pedro. Deus se mostra, apesar da truculência de Pedro.

Gente de alma sensível é o tipo de gente que experimenta Deus como um derramamento, como descrito no texto. Uma história de sensibilidade não poderia ter outro desfecho. Não foi estratégia, nem qualquer outra coisa. Foi sensibilidade reverente que escancarou aquela casa para Deus e seu Espírito.
Veja a cronologia do derramamento do Espírito Santo sobre todos os daquela casa. Pedro não fez apelo. Enquanto pregava, o Espírito Santo foi derramado sobre todos.
A maneira como Cornélio recebe o Espírito mostra como ele ouve a Palavra de Deus. Ele experimenta o mesmo Deus, que já lhe havia falado, com uma nova mensagem. E no meio de um sermão que nem precisa ser concluído. Agora vem a religião, mas Deus veio primeiro.
O Espírito é vento livre, sopra onde quer (João 3:8). Assim é a liberdade de Deus.

Solus Christus!

Compilado e adaptado de:
Elienai Cabral Jr., Salvos da Perfeição, Ultimato

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